ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO
Um
olhar histórico sobre a alfabetização escolar no Brasil revela uma trajetória
de sucessivas mudanças conceituais e consequentemente, metodológicas.
Atualmente perpassamos momentos de mudança – é o que prenuncia o questionamento
a que vêm sendo submetidos os quadros conceituais e as práticas deles
decorrentes que prevaleceram na área da alfabetização nas últimas três décadas:
pesquisas vêm apresentando problemas nos processos e resultados da
alfabetização de crianças no contexto escolar, insatisfações e inseguranças
entre alfabetizadores.
O
poder público e a população diante do fracasso da escola em alfabetizar
evidenciam por avaliações nacionais e estaduais, vêm provocando críticas e
motivando propostas avaliadas através das teorias e práticas atuais de
alfabetização. Um momento como este é, sem dúvida, desafiador, porque estimula
a revisão dos caminhos já trilhados e perpassando também por outros caminhos.
Este
texto discutirá caminhos e descaminhos em busca de esclarecer e comparar os conceitos de
alfabetização e letramento, visando encontrar relações entre esses dois
processos.
Portanto
iniciaremos refletindo sobre o que vem a ser
Letramento; que pode ser interpretado como decorrência da necessidade de
configurar e nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da
escrita que ultrapassem o domínio do sistema alfabético e ortográfico, nível de
aprendizagem da língua escrita perseguido, tradicionalmente, pelo processo de
alfabetização. Esses comportamentos e práticas sociais de leitura e de escrita
foram adquirindo visibilidade e importância à medida que a vida social e as
atividades profissionais foram-se tornando cada vez mais centradas na língua
escrita, revelando a insuficiência de apenas alfabetizar– no sentido
tradicional – a criança ou o adulto. Em um primeiro momento, essa visibilidade
se traduziu ou numa adjetivação da palavra alfabetização– alfabetização
funcional tornou-se expressão bastante difundida – ou em tentativas de
ampliação do significado de alfabetização, alfabetizar, por meio de afirmações
como “alfabetização não é apenas aprender a ler e a escrever”, “alfabetizar é
muito mais que apenas ensinar a codificar e decodificar”, e outras semelhantes.
A insuficiência desses recursos para criar objetivos e procedimentos de ensino
e de aprendizagem que efetivamente ampliassem o significado de alfabetização,
alfabetizar, alfabetizado é que pode justificar o surgimento da palavra
letramento, consequência da necessidade de destacar e claramente configurar,
nomeando-os, comportamentos e práticas de uso do sistema de escrita, em situações
sociais em que a leitura ou a escrita estejam envolvidas.
Entretanto,
provavelmente devido ao fato de o conceito de letramento ter sua origem numa
ampliação do conceito de alfabetização, esses dois processos têm sido frequentemente
confundidos e até mesmo fundidos. Pode-se admitir que, no plano conceitual,
talvez a distinção entre alfabetização e letramento não fosse necessária,
bastando que se ressignificasse o conceito de alfabetização (como sugeriu
Emilia Ferreiro em recente entrevista concedida à revista Nova Escola, n. 162,
maio 2003); no plano pedagógico, porém, a distinção torna-se conveniente,
embora seja também imperativamente conveniente que, ainda que distintos, os
dois processos sejam reconhecidos como indissociáveis e interdependentes.
Assim,
por um lado, é necessário reconhecer que alfabetização– entendida como a aquisição do sistema convencional de
escrita distinguindo-se de letramento
que entendido como o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso
competente da leitura e da escrita em práticas sociais: distinguem-se tanto em
relação aos objetos de conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos
e linguísticos de aprendizagem , portanto, o ensino desses diferentes objetos – isso
explica por que é conveniente a distinção entre os dois.
Por
outro lado, é necessário também reconhecer que, embora distintos, alfabetização
e letramento são interdependentes e indissociáveis: a alfabetização só tem
sentido quando desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de
escrita e por meio dessas práticas, ou seja: em um contexto de letramento e por
meio de atividades de letramento; este, por sua vez, só pode desenvolver-se na
dependência por meio da aprendizagem do sistema de escrita.
Uma
análise das mudanças conceituais e metodológicas ocorridas ao longo da história
do ensino da língua escrita no início da escolarização revela que, até os anos
80, o objetivo maior era a alfabetização (tal como acima definida), isto é,
enfatizava-se fundamentalmente a aprendizagem do sistema convencional da
escrita. Em torno desse objetivo principal, métodos de alfabetização alternaram-se
em um movimento pendular: ora a opção pelo princípio da síntese, segundo o qual
a alfabetização deve partir das unidades menores da língua – dos fonemas, das
sílabas – em direção às unidades maiores – à palavra, à frase, ao texto (método
fônico, método silábico); ora a opção pelo princípio da análise, segundo o qual
a alfabetização deve, ao contrário, partir das unidades maiores e portadoras de
sentido – a palavra, a frase, o texto, em direção às unidades menores (método
da palavração, método da sentenciação, método global). Em ambas as opções,
porém, a meta sempre foi à aprendizagem do sistema alfabético e ortográfico da
escrita; embora se possa identificar, na segunda opção, uma preocupação também
com o sentido veiculado pelo código, seja no nível do texto (método global),
seja no nível da palavra ou da sentença (método da palavração, método da
sentenciação), estes textos, palavras, sentenças – são postos a serviço da
aprendizagem do sistema de escrita: palavras são intencionalmente selecionadas
para servir à sua decomposição em sílabas e fonemas, sentenças e textos são
artificialmente construídos, com rígido controle léxico e morfossintático, para
servir à sua decomposição em palavras, sílabas, fonemas.
Assim,
pode-se dizer que até os anos 80 a alfabetização escolar no Brasil
caracterizou-se por uma alternância entre métodos sintéticos e métodos
analíticos, sempre, porém, com o mesmo pressuposto – o de que a criança, para
aprender o sistema de escrita, dependeria de estímulos externos cuidadosamente selecionados
ou artificialmente construídos, e também sempre com o mesmo objetivo – o
domínio desse sistema, considerado condição e pré-requisito para que a criança
desenvolvesse habilidades de uso da leitura e da escrita, isto é: primeiro,
aprender a ler e a escrever, verbos nesta etapa considerados intransitivos,
para só depois de vencida essa etapa atribuir complementos a esses verbos: ler
textos, livros, escrever estórias, cartas...
Nos
anos 80, a perspectiva psicogenética da aprendizagem da língua escrita,
divulgada entre nós, sobretudo pela obra e pela atuação formativa de Emilia
Ferreiro, sob a denominação de “construtivismo”, trouxe uma significativa
mudança de pressupostos e objetivos na área da alfabetização, porque alterou
fundamentalmente a concepção do processo de aprendizagem e apagou a distinção
entre aprendizagem do sistema de escrita e práticas efetivas de leitura e de
escrita. Essa mudança paradigmática permitiu identificar e explicar o processo
através do qual a criança constrói o conceito de língua escrita como um sistema
de representação dos sons da fala por sinais gráficos, isto é, o processo
através do qual a criança se torna alfabética, e, por outro lado, e como
conseqüência, sugeriu as condições em que mais adequadamente esse processo se
desenvolve, isto é, revelou o papel fundamental que tem, para o processo de
conceitualização da língua escrita, uma interação intensa e diversificado da
criança com práticas e materiais reais de leitura e de escrita.
Entretanto,
o foco no processo de conceitualização da língua escrita pela criança dando
ênfase na importância de sua interação com práticas de leitura e de escrita
como meio para provocar e motivar esse processo têm subestimado, na prática
escolar da aprendizagem inicial da língua escrita, o ensino sistemático das
relações entre a fala e a escrita, de que se ocupa a alfabetização, tal como
anteriormente definida.
Como
conseqüência de o construtivismo ter evidenciado processos espontâneos de
compreensão da escrita pela criança, ter condenado os métodos que enfatizavam o
ensino direto e explícito do sistema de escrita e, sendo fundamentalmente uma
teoria psicológica, e não pedagógica, não ter proposto uma metodologia de
ensino, os professores foram levados a supor que, a despeito de sua natureza
convencional e frequentemente arbitrária, as relações entre a fala e a escrita
seriam construídas pela criança de forma incidental e assistemática, como
decorrência natural de sua interação com numerosas e variadas práticas de
leitura e de escrita, ou seja, através de atividades de letramento,
prevalecendo, pois, estas sobre as atividades de alfabetização. É sobretudo
essa ausência de ensino direto, explícito e sistemático da transferência da
cadeia sonora da fala para a forma gráfica da escrita que tem motivado as
críticas que atualmente vêm sendo feitas ao construtivismo, e é ela que explica
por que vêm surgindo, surpreendentemente, propostas de retorno a um método
fônico como solução para os problemas que vimos enfrentando na aprendizagem
inicial da língua escrita pelas crianças.
No
entanto, não é retornando a um passado já superado e negando avanços teóricos
incontestáveis que esses problemas serão esclarecidos e resolvidos.
Por
outro lado, ignorar ou recusar a crítica aos atuais pressupostos teóricos e a
insuficiência das práticas que deles têm decorrido resultará certamente em martelos
inalterados e persistentes. Ou seja: o momento é de procurar caminhos e recusar
descaminhos.
A
aprendizagem da língua escrita tem sido objeto de pesquisa e estudo de várias
ciências nas últimas décadas, cada uma delas privilegiando uma das facetas
dessa aprendizagem; para citar as mais salientes: a faceta fônica, que envolve
o desenvolvimento da consciência fonológica, imprescindível para que a criança
tome consciência da fala como um sistema de sons e compreenda o sistema de
escrita como um sistema de representação desses sons, e a aprendizagem das
relações fonema-grafema e demais convenções de transferência da forma sonora da
fala para a forma gráfica da escrita; a faceta da leitura fluente, que exige o
reconhecimento holístico de palavras e sentenças; a faceta da leitura
compreensiva, que supõe ampliação de vocabulário e desenvolvimento de
habilidades como interpretação, avaliação, inferência, entre outras; a faceta da
identificação e uso adequado das diferentes funções da escrita, dos diferentes
portadores de texto, dos diferentes tipos e gêneros de texto.Fundamenta cada
uma dessas facetas teorias de aprendizagem, princípios fonéticos e fonológicos,
linguísticos, psicolinguísticos, sociolinguísticos, teorias da leitura, teorias
da produção textual, teorias do texto e do discurso... Consequentemente, cada
uma dessas facetas exige metodologia de ensino específica, de acordo com sua
natureza, algumas dessas metodologias caracterizadas por ensino direto e
explícito, como é o caso da faceta para a qual se volta à alfabetização, outras
por ensino muitas vezes incidental e indireto, porque dependente das
possibilidades e motivações das crianças, bem como das circunstâncias e contexto
em que se realize a aprendizagem, como é caso das facetas que se caracterizam
como de letramento.
A
tendência, porém, tem sido privilegiar, na aprendizagem inicial da língua
escrita, apenas uma de suas várias facetas e, consequentemente, apenas uma metodologia:
assim fazem os métodos hoje considerados como “tradicionais” que, como já foi
dito, voltam-se predominantemente para a faceta fônica, isto é, para o ensino e
a aprendizagem do sistema de escrita; por outro lado, assim também tem feito o
chamado “construtivismo”, que se volta predominantemente para as facetas
referentes ao letramento, privilegiando o envolvimento da criança com a escrita
em suas diferentes funções, seus diferentes portadores, com os muitos tipos e
gêneros de texto. No entanto, os conhecimentos que atualmente esclarecem tanto
os processos de aprendizagem quanto os objetos da aprendizagem da língua
escrita, e as relações entre aqueles e estes, evidenciam que privilegiar uma ou
algumas facetas, subestimando ou ignorando outras, é um equívoco, um descaminho
no ensino e aprendizagem da língua escrita, mesmo em sua etapa inicial – talvez
por isso tenhamos sempre fracassado nesse ensino e aprendizagem; o caminho para
esse ensino e aprendizagem é a articulação de conhecimentos e metodologias
fundamentados em diferentes ciências, e sua tradução em uma prática docente que
integre as várias facetas, isto é, que articule a aquisição do sistema de
escrita, que é favorecida por ensino direto, explícito e ordenado, aqui
compreendido como sendo o processo de alfabetização, com o desenvolvimento de
habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas
sociais de leitura e de escrita, aqui compreendido como sendo o processo de
letramento.
A
utilização, acima, dos verbos integrar, articular retoma a afirmação
anteriormente feita de que os dois processos – alfabetização e letramento –
são, no estado atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua
escrita, indissociáveis, simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se,
isto é, constrói seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua
escrita, em situações de letramento, isto é, no contexto de e por meio de
interação com material escrito real, e não artificialmente construído, e de sua
participação em práticas sociais de leitura e de escrita; por outro lado, a
criança desenvolve habilidades e comportamentos de uso competente da língua
escrita nas práticas sociais que a envolvem no contexto do, por meio do e em
dependência do processo de aquisição do sistema alfabético e ortográfico da
escrita. Este alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando, pela integração e
articulação das várias facetas do processo de aprendizagem inicial da língua
escrita, é, sem dúvida, o caminho para a superação dos problemas que vimos
enfrentando nesta etapa da escolarização; descaminhos serão tentativas de
voltar a privilegiar esta ou aquela faceta, como se fez no passado, como se faz
hoje, sempre resultando em fracasso, este reiterado fracasso da escola
brasileira em dar às crianças acesso efetivo e competente ao mundo da escrita.
(Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004)
Alfabetização
e Letramento. O acesso à “tecnologia” do ler e escrever e, em decorrência ao
conhecimento, sobretudo o sistematizado que se encontra registrado em textos
escritos, também não esta igual e livremente disponível para todos. Os
significados, usos, funções da leitura e escrita e as formas de produção,
distribuição e utilização do material escrito e impresso também dependem do
tipo de sociedade e dos projetos políticos, sociais e culturais em disputa em
determinado momento histórico.
E, embora o letramento não seja consequência natural da alfabetização, pode-se considerar que o individuo letrado e alfabetizado e mais poderoso que o letrado não alfabetizado. Isso significa concluir ingenuamente que a condição de alfabetizado e letrado, por si só, seja suficiente para garantir o exercício pleno da cidadania, sobretudo se considerarmos os elevados números da pobreza e da miséria, que vem aumentando e se traduzem em grande contingente de excluídos sociais e culturais em nosso país.
E, embora o letramento não seja consequência natural da alfabetização, pode-se considerar que o individuo letrado e alfabetizado e mais poderoso que o letrado não alfabetizado. Isso significa concluir ingenuamente que a condição de alfabetizado e letrado, por si só, seja suficiente para garantir o exercício pleno da cidadania, sobretudo se considerarmos os elevados números da pobreza e da miséria, que vem aumentando e se traduzem em grande contingente de excluídos sociais e culturais em nosso país.
Referências
Bibliográficas
(Revista Pátio, n. 29,
fevereiro de 2004)
SOARES, M. B. Letramento:
um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.
COLELLO, S. M. G. “A pedagogia da exclusão no
ensino da língua escrita” In VIDETUR, n. 23. Porto/Portugal, Mandruvá,
2003, pp. 27 – 34 (www.hottopos.com).
COLELLO, S. M. G. & SILVA, N.
“Letramento: do processo de exclusão social aos vícios da prática pedagógica”
In VIDETUR, n. 21. Porto/Portugal: Mandruvá, 2003, pp. 21 – 34
(ww.hottopos.com).
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