sábado, 26 de outubro de 2013

"Alfabetização e Letramento"


ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO

Um olhar histórico sobre a alfabetização escolar no Brasil revela uma trajetória de sucessivas mudanças conceituais e consequentemente, metodológicas. Atualmente perpassamos momentos de mudança – é o que prenuncia o questionamento a que vêm sendo submetidos os quadros conceituais e as práticas deles decorrentes que prevaleceram na área da alfabetização nas últimas três décadas: pesquisas vêm apresentando problemas nos processos e resultados da alfabetização de crianças no contexto escolar, insatisfações e inseguranças entre alfabetizadores.
O poder público e a população diante do fracasso da escola em alfabetizar evidenciam por avaliações nacionais e estaduais, vêm provocando críticas e motivando propostas avaliadas através das teorias e práticas atuais de alfabetização. Um momento como este é, sem dúvida, desafiador, porque estimula a revisão dos caminhos já trilhados e perpassando também por outros caminhos.
Este texto discutirá caminhos e descaminhos em busca de  esclarecer e comparar os conceitos de alfabetização e letramento, visando encontrar relações entre esses dois processos.
Portanto iniciaremos refletindo sobre o que vem a ser  Letramento; que pode ser interpretado como decorrência da necessidade de configurar e nomear comportamentos e práticas sociais na área da leitura e da escrita que ultrapassem o domínio do sistema alfabético e ortográfico, nível de aprendizagem da língua escrita perseguido, tradicionalmente, pelo processo de alfabetização. Esses comportamentos e práticas sociais de leitura e de escrita foram adquirindo visibilidade e importância à medida que a vida social e as atividades profissionais foram-se tornando cada vez mais centradas na língua escrita, revelando a insuficiência de apenas alfabetizar– no sentido tradicional – a criança ou o adulto. Em um primeiro momento, essa visibilidade se traduziu ou numa adjetivação da palavra alfabetização– alfabetização funcional tornou-se expressão bastante difundida – ou em tentativas de ampliação do significado de alfabetização, alfabetizar, por meio de afirmações como “alfabetização não é apenas aprender a ler e a escrever”, “alfabetizar é muito mais que apenas ensinar a codificar e decodificar”, e outras semelhantes. A insuficiência desses recursos para criar objetivos e procedimentos de ensino e de aprendizagem que efetivamente ampliassem o significado de alfabetização, alfabetizar, alfabetizado é que pode justificar o surgimento da palavra letramento, consequência da necessidade de destacar e claramente configurar, nomeando-os, comportamentos e práticas de uso do sistema de escrita, em situações sociais em que a leitura ou a escrita estejam envolvidas.
Entretanto, provavelmente devido ao fato de o conceito de letramento ter sua origem numa ampliação do conceito de alfabetização, esses dois processos têm sido frequentemente confundidos e até mesmo fundidos. Pode-se admitir que, no plano conceitual, talvez a distinção entre alfabetização e letramento não fosse necessária, bastando que se ressignificasse o conceito de alfabetização (como sugeriu Emilia Ferreiro em recente entrevista concedida à revista Nova Escola, n. 162, maio 2003); no plano pedagógico, porém, a distinção torna-se conveniente, embora seja também imperativamente conveniente que, ainda que distintos, os dois processos sejam reconhecidos como indissociáveis e interdependentes.
Assim, por um lado, é necessário reconhecer que alfabetização– entendida como a  aquisição do sistema convencional de escrita  distinguindo-se de letramento que entendido como o desenvolvimento de comportamentos e habilidades de uso competente da leitura e da escrita em práticas sociais: distinguem-se tanto em relação aos objetos de conhecimento quanto em relação aos processos cognitivos e linguísticos de aprendizagem , portanto, o  ensino desses diferentes objetos – isso explica por que é conveniente a distinção entre os dois.
Por outro lado, é necessário também reconhecer que, embora distintos, alfabetização e letramento são interdependentes e indissociáveis: a alfabetização só tem sentido quando desenvolvida no contexto de práticas sociais de leitura e de escrita e por meio dessas práticas, ou seja: em um contexto de letramento e por meio de atividades de letramento; este, por sua vez, só pode desenvolver-se na dependência por meio da aprendizagem do sistema de escrita.
Uma análise das mudanças conceituais e metodológicas ocorridas ao longo da história do ensino da língua escrita no início da escolarização revela que, até os anos 80, o objetivo maior era a alfabetização (tal como acima definida), isto é, enfatizava-se fundamentalmente a aprendizagem do sistema convencional da escrita. Em torno desse objetivo principal, métodos de alfabetização alternaram-se em um movimento pendular: ora a opção pelo princípio da síntese, segundo o qual a alfabetização deve partir das unidades menores da língua – dos fonemas, das sílabas – em direção às unidades maiores – à palavra, à frase, ao texto (método fônico, método silábico); ora a opção pelo princípio da análise, segundo o qual a alfabetização deve, ao contrário, partir das unidades maiores e portadoras de sentido – a palavra, a frase, o texto, em direção às unidades menores (método da palavração, método da sentenciação, método global). Em ambas as opções, porém, a meta sempre foi à aprendizagem do sistema alfabético e ortográfico da escrita; embora se possa identificar, na segunda opção, uma preocupação também com o sentido veiculado pelo código, seja no nível do texto (método global), seja no nível da palavra ou da sentença (método da palavração, método da sentenciação), estes textos, palavras, sentenças – são postos a serviço da aprendizagem do sistema de escrita: palavras são intencionalmente selecionadas para servir à sua decomposição em sílabas e fonemas, sentenças e textos são artificialmente construídos, com rígido controle léxico e morfossintático, para servir à sua decomposição em palavras, sílabas, fonemas.
Assim, pode-se dizer que até os anos 80 a alfabetização escolar no Brasil caracterizou-se por uma alternância entre métodos sintéticos e métodos analíticos, sempre, porém, com o mesmo pressuposto – o de que a criança, para aprender o sistema de escrita, dependeria de estímulos externos cuidadosamente selecionados ou artificialmente construídos, e também sempre com o mesmo objetivo – o domínio desse sistema, considerado condição e pré-requisito para que a criança desenvolvesse habilidades de uso da leitura e da escrita, isto é: primeiro, aprender a ler e a escrever, verbos nesta etapa considerados intransitivos, para só depois de vencida essa etapa atribuir complementos a esses verbos: ler textos, livros, escrever estórias, cartas...
Nos anos 80, a perspectiva psicogenética da aprendizagem da língua escrita, divulgada entre nós, sobretudo pela obra e pela atuação formativa de Emilia Ferreiro, sob a denominação de “construtivismo”, trouxe uma significativa mudança de pressupostos e objetivos na área da alfabetização, porque alterou fundamentalmente a concepção do processo de aprendizagem e apagou a distinção entre aprendizagem do sistema de escrita e práticas efetivas de leitura e de escrita. Essa mudança paradigmática permitiu identificar e explicar o processo através do qual a criança constrói o conceito de língua escrita como um sistema de representação dos sons da fala por sinais gráficos, isto é, o processo através do qual a criança se torna alfabética, e, por outro lado, e como conseqüência, sugeriu as condições em que mais adequadamente esse processo se desenvolve, isto é, revelou o papel fundamental que tem, para o processo de conceitualização da língua escrita, uma interação intensa e diversificado da criança com práticas e materiais reais de leitura e de escrita.
Entretanto, o foco no processo de conceitualização da língua escrita pela criança dando ênfase na importância de sua interação com práticas de leitura e de escrita como meio para provocar e motivar esse processo têm subestimado, na prática escolar da aprendizagem inicial da língua escrita, o ensino sistemático das relações entre a fala e a escrita, de que se ocupa a alfabetização, tal como anteriormente definida.
Como conseqüência de o construtivismo ter evidenciado processos espontâneos de compreensão da escrita pela criança, ter condenado os métodos que enfatizavam o ensino direto e explícito do sistema de escrita e, sendo fundamentalmente uma teoria psicológica, e não pedagógica, não ter proposto uma metodologia de ensino, os professores foram levados a supor que, a despeito de sua natureza convencional e frequentemente arbitrária, as relações entre a fala e a escrita seriam construídas pela criança de forma incidental e assistemática, como decorrência natural de sua interação com numerosas e variadas práticas de leitura e de escrita, ou seja, através de atividades de letramento, prevalecendo, pois, estas sobre as atividades de alfabetização. É sobretudo essa ausência de ensino direto, explícito e sistemático da transferência da cadeia sonora da fala para a forma gráfica da escrita que tem motivado as críticas que atualmente vêm sendo feitas ao construtivismo, e é ela que explica por que vêm surgindo, surpreendentemente, propostas de retorno a um método fônico como solução para os problemas que vimos enfrentando na aprendizagem inicial da língua escrita pelas crianças.
No entanto, não é retornando a um passado já superado e negando avanços teóricos incontestáveis que esses problemas serão esclarecidos e resolvidos.
Por outro lado, ignorar ou recusar a crítica aos atuais pressupostos teóricos e a insuficiência das práticas que deles têm decorrido resultará certamente em martelos inalterados e persistentes. Ou seja: o momento é de procurar caminhos e recusar descaminhos.
A aprendizagem da língua escrita tem sido objeto de pesquisa e estudo de várias ciências nas últimas décadas, cada uma delas privilegiando uma das facetas dessa aprendizagem; para citar as mais salientes: a faceta fônica, que envolve o desenvolvimento da consciência fonológica, imprescindível para que a criança tome consciência da fala como um sistema de sons e compreenda o sistema de escrita como um sistema de representação desses sons, e a aprendizagem das relações fonema-grafema e demais convenções de transferência da forma sonora da fala para a forma gráfica da escrita; a faceta da leitura fluente, que exige o reconhecimento holístico de palavras e sentenças; a faceta da leitura compreensiva, que supõe ampliação de vocabulário e desenvolvimento de habilidades como interpretação, avaliação, inferência, entre outras; a faceta da identificação e uso adequado das diferentes funções da escrita, dos diferentes portadores de texto, dos diferentes tipos e gêneros de texto.Fundamenta cada uma dessas facetas teorias de aprendizagem, princípios fonéticos e fonológicos, linguísticos, psicolinguísticos, sociolinguísticos, teorias da leitura, teorias da produção textual, teorias do texto e do discurso... Consequentemente, cada uma dessas facetas exige metodologia de ensino específica, de acordo com sua natureza, algumas dessas metodologias caracterizadas por ensino direto e explícito, como é o caso da faceta para a qual se volta à alfabetização, outras por ensino muitas vezes incidental e indireto, porque dependente das possibilidades e motivações das crianças, bem como das circunstâncias e contexto em que se realize a aprendizagem, como é caso das facetas que se caracterizam como de letramento.
A tendência, porém, tem sido privilegiar, na aprendizagem inicial da língua escrita, apenas uma de suas várias facetas e, consequentemente, apenas uma metodologia: assim fazem os métodos hoje considerados como “tradicionais” que, como já foi dito, voltam-se predominantemente para a faceta fônica, isto é, para o ensino e a aprendizagem do sistema de escrita; por outro lado, assim também tem feito o chamado “construtivismo”, que se volta predominantemente para as facetas referentes ao letramento, privilegiando o envolvimento da criança com a escrita em suas diferentes funções, seus diferentes portadores, com os muitos tipos e gêneros de texto. No entanto, os conhecimentos que atualmente esclarecem tanto os processos de aprendizagem quanto os objetos da aprendizagem da língua escrita, e as relações entre aqueles e estes, evidenciam que privilegiar uma ou algumas facetas, subestimando ou ignorando outras, é um equívoco, um descaminho no ensino e aprendizagem da língua escrita, mesmo em sua etapa inicial – talvez por isso tenhamos sempre fracassado nesse ensino e aprendizagem; o caminho para esse ensino e aprendizagem é a articulação de conhecimentos e metodologias fundamentados em diferentes ciências, e sua tradução em uma prática docente que integre as várias facetas, isto é, que articule a aquisição do sistema de escrita, que é favorecida por ensino direto, explícito e ordenado, aqui compreendido como sendo o processo de alfabetização, com o desenvolvimento de habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais de leitura e de escrita, aqui compreendido como sendo o processo de letramento.
A utilização, acima, dos verbos integrar, articular retoma a afirmação anteriormente feita de que os dois processos – alfabetização e letramento – são, no estado atual do conhecimento sobre a aprendizagem inicial da língua escrita, indissociáveis, simultâneos e interdependentes: a criança alfabetiza-se, isto é, constrói seu conhecimento do sistema alfabético e ortográfico da língua escrita, em situações de letramento, isto é, no contexto de e por meio de interação com material escrito real, e não artificialmente construído, e de sua participação em práticas sociais de leitura e de escrita; por outro lado, a criança desenvolve habilidades e comportamentos de uso competente da língua escrita nas práticas sociais que a envolvem no contexto do, por meio do e em dependência do processo de aquisição do sistema alfabético e ortográfico da escrita. Este alfabetizar letrando, ou letrar alfabetizando, pela integração e articulação das várias facetas do processo de aprendizagem inicial da língua escrita, é, sem dúvida, o caminho para a superação dos problemas que vimos enfrentando nesta etapa da escolarização; descaminhos serão tentativas de voltar a privilegiar esta ou aquela faceta, como se fez no passado, como se faz hoje, sempre resultando em fracasso, este reiterado fracasso da escola brasileira em dar às crianças acesso efetivo e competente ao mundo da escrita. (Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004)
Alfabetização e Letramento. O acesso à “tecnologia” do ler e escrever e, em decorrência ao conhecimento, sobretudo o sistematizado que se encontra registrado em textos escritos, também não esta igual e livremente disponível para todos. Os significados, usos, funções da leitura e escrita e as formas de produção, distribuição e utilização do material escrito e impresso também dependem do tipo de sociedade e dos projetos políticos, sociais e culturais em disputa em determinado momento histórico.
E, embora o letramento não seja consequência natural da alfabetização, pode-se considerar que o individuo letrado e alfabetizado e mais poderoso que o letrado não alfabetizado. Isso significa concluir ingenuamente que a condição de alfabetizado e letrado, por si só, seja suficiente para garantir o exercício pleno da cidadania, sobretudo se considerarmos os elevados números da pobreza e da miséria, que vem aumentando e se traduzem em grande contingente de excluídos sociais e culturais em nosso país.

                                                    Referências Bibliográficas                
(Revista Pátio, n. 29, fevereiro de 2004)
SOARES, M. B. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.
COLELLO, S. M. G. “A pedagogia da exclusão no ensino da língua escrita” In VIDETUR, n. 23. Porto/Portugal, Mandruvá, 2003, pp. 27 – 34 (www.hottopos.com).
COLELLO, S. M. G. & SILVA, N. “Letramento: do processo de exclusão social aos vícios da prática pedagógica” In VIDETUR, n. 21. Porto/Portugal: Mandruvá, 2003, pp. 21 – 34 (ww.hottopos.com).

Nenhum comentário:

Postar um comentário